Revista de Educación Estadística

Revista de Educación Estadística

https://revistaeduest.ucm.cl/

Vol. 2, n. 1, 1-21, abr. 2023 - sep. 2023

ISSN 2810-6164

 

DOI: https://doi.org/10.29035/redes.2.1.8

 

O PROJETO DE APRENDIZAGEM ESTATÍSTICO: UM IMPORTANTE RECURSO PARA EXPLORAÇÃO DA INTERDISCIPLINARIDADE

El Proyecto de Aprendizaje Estadístico: Un recurso importante para explorar la Interdisciplinariedad

The Statistical Learning Project: An important resource for exploring Interdisciplinarity in the post-BNCC education

 

Cassio Cristiano Giordano*1

Universidade Federal do Rio Grande (Rio Grande, Brasil)

Fernanda Angelo Pereira2

Universidade Federal do Rio Grande (Rio Grande, Brasil)

Tiago da Silva Gautério3

Universidade Federal do Rio Grande (Rio Grande, Brasil)

Mauren Porciúncula4

Universidade Federal do Rio Grande (Rio Grande, Brasil)

 

Resumo

Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa inserida em um programa de letramento multimídia estatístico de uma universidade pública brasileira, com apoio financeiro e estratégico de duas instituições parceiras, que teve como um dos seus objetivos desenvolver o Projeto de Aprendizagem Estatístico (PAE) nos anos finais do Ensino Fundamental, em duas escolas públicas de uma cidade do Sul do Brasil, em 2021, oferecendo formação continuada colaborativa aos professores, tutorias remotas aos estudantes, auxílio técnico, didático-pedagógico e material às escolas. Nosso objetivo é evidenciar o potencial do PAE, enquanto metodologia de ensino, para articular diferentes componentes curriculares em uma perspectiva interdisciplinar contemplando demandas da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o desenvolvimento da unidade temática Probabilidade e Estatística. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, do tipo estudo de caso, que analisou as interações entre os pesquisadores, professores e estudantes, nos grupos de tutoria, assim como depoimentos dos docentes, apresentados em um grupo focal. Os resultados apontam para vantagens em termos de otimização de tempo e de recursos, maior motivação dos estudantes, protagonismo discente na organização e condução de pesquisas sobre temas por eles mesmos definidos, maior confiança dos docentes na implementação, gestão e desenvolvimento de pesquisa estatística, como prescrita na BNCC.

Palavras-chave: Educação Estatística, Projeto de Aprendizagem Estatístico, Interdisciplinaridade, Letramento Estatístico, BNCC.

 

Resumen

Este artículo presenta los resultados de una investigación inserta en un programa de alfabetización multimedia estadística, de una universidad pública brasileña, con apoyo financiero y estratégico de dos instituciones asociadas, que tuvo como uno de sus objetivos desarrollar el Proyecto de Aprendizaje Estadístico (PAE), en los últimos años de Educación Básica, en dos escuelas públicas de una ciudad del sur de Brasil, en 2021, ofreciendo formación continua colaborativa a los profesores, tutorías a distancia a los alumnos, asistencia técnica, didáctico-pedagógica y material a las escuelas. Nuestro objetivo es resaltar el potencial del PAE, como metodología de enseñanza, para articular diferentes componentes curriculares en una perspectiva interdisciplinaria, contemplando las demandas de la Base Curricular Común Nacional (BNCC) y el desarrollo de la unidad temática Probabilidad y Estadística. Se trata de una investigación cualitativa, del tipo estudio de caso, que analizó las interacciones entre investigadores, profesores y estudiantes, en los grupos de tutoría, así como testimonios de profesores, presentados en grupo focal. Los resultados apuntan a ventajas en términos de optimización de tiempo y recursos, mayor motivación de los estudiantes, liderazgo de los estudiantes en la organización y realización de investigaciones sobre temas que ellos mismos definen, mayor confianza por parte de los profesores en la implementación, gestión y desarrollo de investigaciones estadísticas, tales como está prescrito en la BNCC.

Palabras clave: Educación Estadística, Proyecto de Aprendizaje Estadístico, Interdisciplinariedad, Alfabetización Estadística, BNCC.

 

Abstract

This article presents some results of a survey inserted into a program of a statistical multimedia literacy program, from a Brazilian public university, with financial and strategic support from two partner institutions, which had as one of its objectives to develop the Statistical Learning Project in the final years of Elementary School, in two public schools from a city in southern Brazil, in 2021, offering continuous collaborative training to teachers, remote tutoring to students, technical, didactic-pedagogical and material assistance to schools. Our objective is to highlight the potential of the Statistical Learning Project, as a teaching methodology, to bring together and articulate different curricular components in an interdisciplinary perspective, contemplating demands of the National Common Curricular Base (BNCC) and the development of the thematic unit Probability and Statistics. This is a qualitative research, of the case study type, which analyzed the interactions between researchers, professors and students, in the tutoring groups, as well as testimonies from professors, presented in a focus group. The results point to advantages in terms of time and resources optimization, greater student motivation, student protagonist in the organization and conduct of research on themes defined by themselves, greater confidence of professors in the implementation, management and development of research of a statistical nature, as prescribed by the BNCC.

Keywords: Statistical Education, Statistical Learning Project, Interdisciplinarity, Statistical Literacy, BNCC.

 

Recibido: 26/04/2023 - Aceptado: 14/07/2023

 

1. INTRODUÇÃO

 

A Base Nacional Comum Curricular – BNCC (Brasil, 2018) promoveu grandes mudanças curriculares no ensino de Probabilidade e Estatística em nosso país, como a inclusão de pesquisas estatísticas no formato de projetos de aprendizagem, em uma perspectiva contemplada pela Análise Exploratória de Dados (AED). Embora recomendado por muitos especialistas (Batanero e Díaz, 2011), essa proposta não constituía uma prática comum na Educação Básica brasileira (Giordano, 2016), mas se tornou uma importante alternativa para atender às novas exigências curriculares pós-BNCC.

Com o novo documento normativo da Educação Básica nacional, a realização de pesquisas estatísticas por parte dos estudantes, perfazendo o Ciclo Investigativo de Pesquisa (Batanero e Díaz, 2011), da escolha do tema à publicação dos resultados, é prescrita dos anos iniciais do Ensino Fundamental ao término do Ensino Médio. Para o primeiro ano do Ensino Fundamental, por exemplo, encontramos nesse documento:

Objeto de conhecimento: Coleta e organização de informações, registros pessoais para comunicação de informações coletadas [...] Habilidade: (EF01MA22) Realizar pesquisa, envolvendo até duas variáveis categóricas de seu interesse e universo de até 30 elementos, e organizar dados por meio de representações pessoais. (Brasil, 2018, p. 280-281)

E, para o Ensino Médio:

(EM13MAT202) Planejar e executar pesquisa amostral sobre questões relevantes, usando dados coletados diretamente ou em diferentes fontes, e comunicar os resultados por meio de relatório contendo gráficos e interpretação das medidas de tendência central e das medidas de dispersão (amplitude e desvio padrão), utilizando ou não recursos tecnológicos. (Brasil, 2018, p. 546)

Entretanto, como observam Giordano et al. (2019), os professores não estavam devidamente preparados para essa mudança. Era necessário um forte investimento em formação inicial e continuada, tanto para pedagogos quanto para matemáticos.

A universidade de origem dos autores desse artigo vem desenvolvendo, há uma década, um programa de letramento estatístico, que inclui formação continuada de professores, por meio de grupos colaborativos.

Nas próximas páginas, apresentaremos alguns resultados desse trabalho, colhidos em 2021, no momento de transição do ensino remoto emergencial para o modelo presencial pós-pandêmico, com o intuito de evidenciar vantagens e os desafios do Projeto de Aprendizagem Estatístico (PAE) para o desenvolvimento da unidade temática Probabilidade e Estatística, bem como para sua articulação com outros componentes curriculares em uma perspectiva interdisciplinar.

 

2. APORTES TEÓRICOS

 

Giordano (2020) afirma que muitas investigações publicadas recentemente por pesquisadores do campo da Educação Estatística (Barberino, 2016; Cobello, 2018; Giordano, 2016; Mendonça, 2008; Santana, 2011), reconhecem que os alunos da Educação Básica em nosso país, embora manifestem conhecimentos básicos sobre a Estatística, apresentam muita dificuldade em relacionar seus conceitos mais elementares aos problemas de seu dia a dia. Contudo, essa realidade se transforma sensivelmente após a participação ativa no planejamento e na execução de uma pesquisa estatística.

O desenvolvimento do Projeto de Aprendizagem Estatístico (PAE) pode se constituir como uma possibilidade para a exploração de conhecimentos estatísticos, em contextos significativos para os estudantes, bem como técnicas e estratégias de grande relevância para a formação do cidadão crítico, em uma abordagem mais rica e complexa do que aquela oferecida pelo livro didático. Batanero e Díaz (2011) entendem que:

[...] precisamos diferenciar entre saber e poder aplicar conhecimento. A capacidade de aplicar conhecimento matemático geralmente é muito mais difícil do que se supõe, porque requer não apenas conhecimento técnico (como preparar um gráfico ou calcular uma média), mas também conhecimento estratégico (saiba quando usar um determinado conceito ou gráfico). Os problemas e exercícios de livros didáticos geralmente se concentram apenas no conhecimento técnico. Ao trabalhar com projetos, os alunos são colocados na posição de ter que pensar em perguntas como: Qual é o meu problema? Preciso de dados? Quais? Como posso obtê-los? O que esse resultado significa na prática? (Batanero e Díaz, 2011, p. 21)

Lopes e Meirelles (2005) ressaltam que as raízes da Estatística partem de diferentes áreas do conhecimento, nos remetendo à interdisciplinaridade, que instrumentaliza o estudante a investigar os assuntos de outras áreas do conhecimento humano, integrando conceitos, procedimentos e metodologias, e acrescentam: “Para a eficácia do trabalho pedagógico interdisciplinar, acreditamos ser necessário o desenvolvimento de um projeto educacional mais abrangente, centralizado no trabalho em equipe” (p. 3).

Tais ideias nos remetem à aprendizagem baseada em projetos interdisciplinares, por meio de práticas cooperativas em contextos realistas, contemplando pressupostos emergentes da BNCC. Assim, consideramos relevante investigar o desenvolvimento do PAE, em quais aspectos a metodologia de ensino é capaz de promover a interdisciplinaridade e conferir sentido às aulas de Estatística. Fazenda (2011), assevera que, para explorar a interdisciplinaridade em aulas, o professor precisa rever suas práticas e a redescobrir seus talentos.

Segundo Fazenda (2008, p. 21) “se definirmos interdisciplinaridade como junção de disciplinas, cabe pensar currículo apenas na formatação da grade”. Essa concepção de currículo foi sendo lentamente superada, e o surgimento dos Itinerários Formativos (Brasil, 2019a) e dos Temas Contemporâneos Transversais - TCT (Brasil, 2019b) são uma prova disso. Porém, se definirmos interdisciplinaridade como atitude de ousadia e busca frente ao conhecimento (Fazenda, 2008), cabe pensar aspectos que envolvem a cultura do lugar onde se formam os professores. Nesse sentido, a contextualização das práticas docentes se mostra como essencial para o desenvolvimento de uma proposta de ensino interdisciplinar.

Os Itinerários Formativos têm a proposta de aprofundar o conhecimento do estudante a partir dos eixos estruturantes (Figura 1). Esses itinerários são formulados pelas redes de ensino e devem sempre englobar pelo menos um dos eixos estruturantes, além de priorizar a consolidação e a ampliação da formação integral, contribuindo com a construção da cidadania (Brasil, 2019a).

 

Figura 1

Eixos Estruturantes dos Itinerários Formativos Associadas à BNCC (Brasil, 2019a, p. 10)

Eixos Estruturantes dos Itinerários Formativos Associadas à BNCC (Brasil, 2019a, p. 10)

 

Os TCT (Figura 2) buscam uma contextualização dos conteúdos que são ensinados na Educação Básica, relacionando os conceitos das disciplinas com temas que são relevantes e de interesse dos estudantes (Brasil, 2019b). Esses temas buscam contribuir para o desenvolvimento dos alunos como cidadão, contribuindo assim para uma formação integral.

 

Figura 2

Temas Contemporâneos Transversais, por Macroáreas Temáticas (Brasil, 2019b, p. 13)

Temas Contemporâneos Transversais, por Macroáreas Temáticas (Brasil, 2019b, p. 13)

 

A BNCC (Brasil, 2018) defende a formação e o desenvolvimento humano global, em suas dimensões intelectual, física, afetiva, social, ética, moral e simbólica. Para tanto, se faz necessário “contextualizar os conteúdos dos componentes curriculares, identificando estratégias para apresentá-los, representá-los, exemplificá-los, conectá-los e torná-los significativos, com base na realidade do lugar e do tempo nos quais as aprendizagens estão situadas” (Brasil, 2018, p. 16), por meio de “estratégias mais dinâmicas, interativas e colaborativas”.

A interdisciplinaridade, para Zabala (2002), acontece quando há “interação entre duas ou mais disciplinas, que podem implicar transferência de leis de uma disciplina a outra, originando, em alguns casos, um novo corpo disciplinar, como, por exemplo, a bioquímica ou a psicolinguística” (p. 33). O emprego do prefixo “inter” pressupõe essa reciprocidade, interação e intersecção entre as disciplinas, hoje compreendidas como componentes curriculares.

Fazenda (2008) acrescenta que “A pesquisa interdisciplinar somente torna-se possível onde várias disciplinas se reúnem a partir de um mesmo objeto, porém é necessário criar uma situação problema” (p. 27). Em consonância com essas ideias, Batanero e Díaz (2011) ressaltam que “os projetos reforçam o interesse do aluno, especialmente se é ele quem escolhe o tema” (p. 22). O problema a ser investigado e o contexto que lhe serve como pano de fundo, que lhe dá sentido, refletindo a sua realidade, diferentemente dos exercícios e os problemas geralmente encontrados nos livros didáticos, que tendem a se concentrar em conhecimentos técnicos procedimentais. No entanto, esse cenário tem mudado, no Brasil, com o Programa Nacional do Livro e do Material Didático – PNLD5, que objetiva avaliar e disponibilizar materiais de apoio, como obras didáticas, pedagógicas e literárias, a instituições de ensino pública, que por possuir critérios estipulados por este objetivo, provocam um movimento de revisão e atualização de coleções de livros didáticos, que hoje apresentam uma perspectiva mais integrada e participativa.

Uma alternativa que corrobora com o contexto apresentado, em particular, no campo da Estatística, recai sobre os projetos de aprendizagem, uma vez que os projetos estatísticos aumentam a motivação dos alunos. Considerando que a Estatística é a ciência dos dados e os dados não são números, mas números em contexto, percebemos que os projetos permitem contextualizar a Estatística e torná-la mais relevante. Dessa maneira “mostra-se que a Estatística não pode ser reduzida a conteúdos matemáticos” (Batanero e Díaz, 2011, p. 22).

Cazorla e Giordano (2021) observam que a Estatística contribui sobremaneira para a exploração interdisciplinar, por se tratar de uma ciência mediadora, cujo papel é auxiliar as outras ciências na apreensão e compreensão dos fenômenos, por meio de evidências científicas empíricas, embasadas em dados. Wild et al. (2018) afirmam que a Estatística é uma meta-disciplina, capaz de transformar dados em insights do mundo real. A dramática realidade que vivemos hoje, com a pandemia da COVID-19, é um bom exemplo disso. Para melhor compreendê-la, se faz necessário o desenvolvimento do letramento estatístico (Gal, 2021; Gould, 2017).

Em consonância com essas ideias, Porciúncula (2022) sugere a implementação do PAE cujo desenvolvimento compreende as etapas: definição da temática (diante do interesse e das inquietudes dos sujeitos pesquisadores), problematização, escolhas dos sujeitos da pesquisa, criação de um instrumento de coleta de dados, obtenção e organização dos dados (por meio de uma survey); análise estatística e discussão dos resultados entre os membros do grupo; apresentação/divulgação dos resultados, com a socialização das informações e por fim, a avaliação da atividade. Segundo essa autora:

A Estatística é uma ciência que possibilita o planejamento de pesquisas que têm a intenção de obter, organizar, resumir, analisar, interpretar e apresentar a variabilidade de um conjunto de dados. Portanto, o objetivo da Estatística é o exame de dados e a aprendizagem sobre estes, para obtenção de informações. (Porciúncula, 2022, p. 8)

O que pode ser investigado em uma pesquisa estatística? Segundo a autora, tudo o que estiver em consonância com as necessidades e interesses do pesquisador, em nosso caso, o aluno. Um fator que muitas vezes não recebe a devida importância é o fato de que, uma vez que isso é possível, o estudante deve escolher o tema investigado. A definição do tema cabe ao grupo de estudantes responsável pela condução de sua pesquisa, e aqui, baseados em Garfield (1993, 2013), defendemos o trabalho colaborativo em pequenas equipes, pois o ‘fazer estatística’ implica na discussão, na argumentação baseada em dados, na integração e conciliação de ideias e opiniões. Essa prerrogativa é defendida por Batanero e Díaz (2011), por Giordano (2016, 2020) e Porciúncula (2022), em que esta última afirma:

No momento de elaboração das questões, ocorre um processo reflexivo e, algumas vezes, os estudantes questionam se pode trocar de temática do Projeto de Aprendizagem Estatístico - PAE. Tudo bem, neste momento! Esta demanda é frequente. Outro aspecto inicial relevante é em relação ao desenvolvimento das atividades individualmente ou em grupos. Se a opção for por um trabalho coletivo, procure garantir que a formação de grupos seja pautada pelas temáticas de interesse, ao invés de outras afinidades, para que sejam preservadas as curiosidades iniciais dos indivíduos. Neste processo cabe ao professor estar aberto ao imprevisto, e ter a delicadeza e habilidade de ouvir e conciliar interesses dos estudantes. (Porciúncula, 2022, p. 13)

Ao desenvolver um PAE, o estudante tem a oportunidade de vivenciar o papel de pesquisador, de grande importância à apropriação dos processos de construção do conhecimento científico, ao aprimoramento da criticidade e ao exercício pleno da cidadania, para convivência em uma sociedade democrática e esclarecida, em um ambiente de justiça social. Nessa perspectiva, desenvolvemos nossas investigações.

 

3. METODOLOGIA E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

 

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, na perspectiva de Creswell e Creswell (2021), do tipo estudo de caso, segundo Yin (2015). Utilizamos, nessa pesquisa, o software NVIVO versão 12.76 na análise lexical. Ele suporta métodos qualitativos e variados de pesquisa. É projetado para ajudar você a organizar, analisar e encontrar informações em dados não estruturados ou qualitativos como: entrevistas, respostas abertas de pesquisa, artigos, mídia social e conteúdo web, indicado para o trabalho com documentos textuais, multi-métodos e dados bibliográficos. Ele facilita a organização de entrevistas, imagens, áudios, discussões em grupo, leis, categorização dos dados e análises. Na parte de dados qualitativos é possível realizar transcrição de vídeos e áudios, codificar texto, análises de redes sociais e/ou páginas da web, entre outros. Na parte quantitativa, tem-se estatística descritiva, inferencial e até mesmo meta-análise, com criação de gráficos, nuvens, análise de cluster e mapas de conexão. Segundo Lage (2011), este software representa uma boa opção como suporte para análise dos dados em pesquisas qualitativas, sobretudo em casos de grade volume de questionários, escassez de tempo e necessidade de cruzamentos entre resultados e atributos dos respondentes. A decisão pelo uso de recursos computacionais para apoio à análise dos dados em uma pesquisa qualitativa cabe ao pesquisador e, em boa parte dos casos, otimiza o trabalho de codificação diante da complexidade de relações e triangulações que essa abordagem metodológica exige. Os sujeitos envolvidos na pesquisa foram cinco professores, com formação em Língua Portuguesa, Ciências, Geografia, Matemática e Artes, com aulas atribuídas em duas turmas de 7º e 8º ano do Ensino Fundamental de duas escolas públicas gaúchas, uma turma de cada escola. Esses professores foram convidados a integrar o Projeto “LeME: Uma interação entre a pesquisa acadêmica e a realidade escolar dos Anos Finais do Ensino Fundamental” (LeME-FCC7) do Programa Letramento Multimídia Estatístico – LeME8, em 2021, a partir de um convite realizado à Secretária Municipal de Educação – SMEd, que repassou a demanda às escolas. Tal Programa, foi criado em 2011 e vem sendo desenvolvido desde 2012, por pesquisadores de uma universidade federal local. Durante a implantação do Projeto LeME-FCC no ano de 2021, contávamos com apoio financeiro e estratégico da Fundação Carlos Chagas (FCC) e do Instituto Itaú Social, tendo por objetivo a promoção da transformação social por meio de práticas pedagógicas lúdicas e contextualizadas. O foco do Programa e de seus Projetos é o desenvolvimento do letramento estatístico de estudantes da Educação Básica, mediado por tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC), instrumentalizando-os para ler, autônoma e criticamente, as informações estatísticas que são veiculadas na sociedade, principalmente pela mídia. Tal objetivo é impulsionado a partir da implementação dos Projetos de Aprendizagem Estatísticos (Porciúncula, 2022), que consiste no desenvolvimento de uma pesquisa de opinião, priorizando a escolha do tema pelo aluno, relacionando todo o processo de construção de aplicação da pesquisa com conceitos e conteúdos estatísticos, além de outros conhecimentos relacionados com o contexto em que o estudante está inserido, bem como a respeito da temática de pesquisa. De acordo com Porciúncula (2022), para a realização de um PAE, podemos trilhar o seguinte caminho:

 

Tabela 1

Passo a passo de um Projeto de Aprendizagem Estatístico

Etapa

Ações

Escolha da temática pelo estudante

É importante que o tema seja escolhido a partir da curiosidade, das dúvidas e das indagações do estudante, isso porque a motivação é própria do aluno. Tal decisão pode ser individual ou coletiva, caso a opção seja desenvolver um PAE em grupos.

Problematização

Nesse momento são determinadas as questões de pesquisa sobre a temática já definida e levantadas as hipóteses para a solução dos problemas propostos.

Escolha dos sujeitos da pesquisa

A pesquisa será feita com quais e quantos indivíduos? São as pessoas do bairro da escola? Os estudantes da turma?...

Criação de um instrumento de coleta de dados

Nesse momento é construído um questionário com perguntas que buscarão dar uma resposta para o problema inicial sobre a temática: “O que se quer saber?”. É preciso também refletir ao tipo de resposta que será coletada: variáveis quantitativas, qualitativas... Serão questões abertas? Múltipla escolha? Escala Likert?...

Coleta de dados

A coleta de dados pode ser feita de forma presencial com o pesquisador perguntando um por um dos entrevistados, com a distribuição do questionário impresso ou mesmo de forma digital por meio do envio de formulários de resposta online.

Organização e análise dos dados

Os dados coletados podem ser analisados a partir da construção de quadro de resumo das respostas dos entrevistados, bem com o uso de softwares específicos.

Divulgação dos dados

Mostrar para o público os principais achados da pesquisa, uma possível resposta para o problema proposto. Isso pode ser feito a partir de textos, gráficos, tabelas, infográficos, vídeos, entre outros recursos disponíveis, físicos e digitais.

Avaliação da atividade

Comparar os achados da pesquisa com as hipóteses levantadas no início do projeto. Avaliar os conhecimentos produzidos, assim como novas temáticas e problemas originados a partir da conclusão do PAE.

Fonte: Porciúncula (2022)

 

Foram analisados registros audiovisuais das reuniões semanais realizadas, no segundo semestre de 2021, com os pesquisadores e professores, em um grupo colaborativo, por meio do Google Meet; dos registros grupos de tutorias criados via WhatsApp, com pesquisadores, professores e alunos que participaram do projeto; das reuniões periódicas também realizadas pelo Google Meet (semanais em uma escola e bissemanais em outra); da gravação feita pelos pesquisadores das apresentações dos resultados finais dos projetos, por parte dos estudantes e de seus professores; e, por fim, de um grupo focal online (GF) realizado ao final do trabalho, na primeira quinzena de dezembro do mesmo ano.

O GF é uma técnica de pesquisa que surgiu ao final da década de 90, no qual Morgan (1997) definiu como um procedimento de pesquisa qualitativa que coleta dados através de interações grupais. Por sua vez, Kitzinger (2000) complementa que consiste em entrevistas com grupos baseadas na comunicação e interação. É uma técnica que busca informações detalhadas sobre um assunto em específico, que se difere da entrevista individual por ter como base a interação entre os entrevistados, guiados pelos objetivos da pesquisa, criando um ambiente de discussão que propicie a manifestação das ideias e pontos de vistas (Minayo, 2000). Em nossa pesquisa, o GF teve por objetivo constatar junto aos professores participantes do projeto que desenvolveram o PAE nas escolas, por meio de uma entrevista coletiva, a percepção dos docentes em relação à implementação do projeto, ressaltando suas considerações a respeito dos conhecimentos docentes, dos conteúdos estatísticos, do desenvolvimento do letramento estatístico, da potencial ludicidade proporcionada pelo PAE e da interdisciplinaridade do projeto, este último foco da nossa discussão neste artigo.

 

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO

 

Buscando identificar oportunidades para exploração interdisciplinar dessa metodologia de ensino, em ambas as escolas, foram acompanhadas todas as etapas do desenvolvimento do PAE (Porciúncula, 2022).

Primeiramente, analisamos, passo a passo, a implementação da proposta metodológica do Projeto Letramento Multimídia Estatístico, apoiado pela Fundação Carlos Chagas (LeME-FCC), por meio do PAE. Ela se deu ao longo de oito encontros para cada escola promovidos pelos cinco professores, juntamente com dezoito estudantes que aceitaram voluntariamente o convite para integrar esse Projeto, com atividades regulares fora do seu horário normal de aulas, no contraturno. Esses encontros aconteciam uma ou duas vezes por semana, em sessões de 1h30min de duração, aproximadamente. Os encontros aconteceram de maneira remota até novembro, quando os estudantes retomaram as aulas presenciais. E foi um momento difícil tanto para eles quanto para os professores, pois todos ainda temiam a contaminação pelo coronavírus.

Nessa fase, analisamos as gravações dos encontros realizados com os estudantes, com os professores e com os pesquisadores da universidade envolvida, além de avaliar os instrumentos de coleta de dados por eles elaborados. O objetivo dos encontros era de que os estudantes desenvolvessem o PAE seguindo as etapas propostas por Porciúncula (2022), mediante as orientações dos professores com o apoio dos pesquisadores do Programa LeME.

Para compreender a percepção dos professores nesse processo, ressaltando a exploração interdisciplinar, além das reuniões semanais com os pesquisadores, realizadas por meio do meio do Google Meet, foi realizado um Grupo Focal (GF), na primeira quinzena de dezembro de 2021, após o evento presencial de divulgação dos resultados das pesquisas realizadas por seus estudantes, em suas respectivas escolas. Ao longo do texto, apresentaremos alguns recortes das transcrições das falas dos professores que participaram do GF. O nosso intuito é mostrar para o leitor evidências que corroboram com as nossas conclusões apresentadas ao final do artigo.

No início do desenvolvimento do PAE, os estudantes foram convidados a se organizar em pequenos grupos e escolher seus temas de investigação. Os seguintes temas de pesquisa foram propostos pelos grupos de estudantes, na primeira escola com a turma de 7º ano: “Profissionais da saúde: respeito e valorização”; “Israel e seu manto de mistérios”; “Japão: mistérios e encantos”; “Animais: curiosidades e descobertas”. Tais temáticas possibilitam revisitar conceitos e promover pesquisas dentro de componentes curriculares, tais como: História, Ciências, Geografia, Artes, dentre outras, além dos conceitos de Estatística presentes na Matemática, além dos TCT propostos pelo Ministério da Educação, respectivamente: “Trabalho”, “Diversidade Cultural” (duas vezes, nos casos de Israel e Japão), “Educação Ambiental”.

Na segunda escola com a turma de 8º ano, os grupos se decidiram pelos temas: “Desenho animado”; “Animais em extinção”; “Espaço e universo”; “Pesquisa sobre o lixo e o meio ambiente”; “Jogos eletrônicos antigos”. Esses temas levantados pelos estudantes estão relacionados à História, à Física, às Artes, às Ciências, à Informática, à Matemática. Quanto aos TCT, destacamos “Diversidade Cultural”, “Educação Ambiental”, “Educação para o Consumo”, “Ciência e Tecnologia”, “Trabalho, “Educação Financeira” e “Saúde”.

Fazenda (2011) ressalta que as práticas interdisciplinares requerem novas estratégias pedagógicas e didáticas, que envolvem uma nova articulação do espaço e do tempo para que trabalhos em grupos e encontros sejam favorecidos, visando aproximação e melhor interação entre professores e estudantes. Certamente essa autora não imaginava o que viveríamos a partir de 2019, com a pandemia de COVID-19, os desafios sobre-humanos apontados por Borba (2021), Saviani e Galvão (2021). A pandemia testou os limites do PAE, o que só nos trouxe maior confiança nessa metodologia de ensino.

Este cenário, caracterizado pela experiência singular do Ensino Remoto Emergencial (Saviani e Galvão, 2021), pelo recebimento de orientações dos professores e dos pesquisadores, em reuniões pelo Google Meet, pelo esclarecimento de dúvidas posteriores às reuniões, a qualquer momento do dia, por meio da tutoria em grupos de WhatsApp, com a definição da população e a amostra da pesquisa e coletando dados por meio do Google Forms, os estudantes superaram as dificuldades tecnológicas. Além disso, problemas de motivação, de engajamento e de comunicação foram suavizados na medida em que o Projeto avançava a partir do emprego de conceitos estatísticos apropriados pelos alunos durante o próprio processo investigativo, segundo princípios da AED (Batanero e Díaz, 2011).

As questões por eles elaboradas evidenciaram os conhecimentos mobilizados a respeito dos processos de reciclagem do lixo, da cultura e dos costumes de Israel e Japão, conceitos a respeito do espaço (Universo), de animais já extintos e outros que convivem com ameaça de extinção, das relações e condições de trabalho, do bem-estar físico e emocional dos profissionais que atuam na área da saúde. Esses indícios mostram as potencialidades interdisciplinares do PAE e, de forma mais ampla, do Programa LeME.

A seguir, algumas das questões elaboradas por um dos grupos de pesquisa:

 

Figura 3

Algumas perguntas do formulário do grupo “Animais em extinção”

Algumas perguntas do formulário do grupo “Animais em extinção”

 

A elaboração das questões acima por um grupo de estudantes exigiu muita pesquisa sobre diferentes campos do conhecimento humano, inclusive alguns que não faziam parte do currículo previsto para aquela turma. Por exemplo, ao investigar sobre animais extintos, tomaram conhecimento de trabalhos científicos que aventavam a possibilidade de clonagem do tigre da Tasmânia, espécie extinta há quase um século, a partir de algumas células preservadas em laboratório, que poderiam ser inseridas no útero de uma fêmea de outra espécie próxima, o demônio da Tasmânia, algo que antes só era visto em livros e filmes de ficção científica, como em Jurassic Park.

Neste formulário, também foram apresentados fatores que, possivelmente, contribuem para a extinção de animais, associados à ciência, tecnologia, educação ambiental e sustentabilidade, que suscitaram muitas discussões entre os alunos, envolvendo fatores sociais, políticos e econômicos, aproximando Matemática, as Ciências da Natureza e as Ciências Sociais.

Fazenda (2011), assevera que a comunicação, o debate, a articulação e integração de conceitos, para a organização do pensamento, já caracterizam a interação interdisciplinar. Constatamos, a partir deste e dos demais questionários construídos pelos estudantes, o potencial interdisciplinar do LeME por meio do trabalho com o PAE.

Quanto aos docentes essa proposta de trabalho suscitou, à princípio, insegurança, medo do novo e da aceitação de uma nova metodologia, porém a confiança no apoio oferecido pelos pesquisadores os levou a aceitar o desafio. Os cinco professores envolvidos afirmaram ser esta a sua primeira experiência com projetos estatísticos. O grupo colaborativo se mostrou acolhedor e continente de suas angústias e ansiedades.

O trabalho interdisciplinar dentro das escolas pode requerer a colaboração de professores de áreas distintas do conhecimento (Fazenda, 2011). Nessa experiência, um deles leciona a disciplina de História e, logo no início, mostrou uma certa apreensão por causa do teor do projeto, isso é o que nos aponta o seguinte recorte da sua fala no âmbito do GF: “ah, é de Estatística, eu já fiquei um pouco com o pé atrás assim porque é uma coisa que eu não gosto mesmo assim, matemática, número, mas tá, vamos fazer, e aí com o decorrer foi...” em resposta à questão “Como se sentiu ao longo do projeto LeME?”.

Ao longo do GF, os professores destacaram que a falta de tempo foi um fator desafiador diante de todos os conceitos e os conteúdos que poderiam ser desenvolvidos durante a realização do projeto. Em resposta à questão “A partir das experiências vivenciadas no LeME Mosaico9, que conhecimentos docentes vocês consideram que foram mobilizados ou produzidos nesse processo?”, os professores ressaltaram aspectos importantes de suas vivências durante o projeto. Destacamos a seguinte fala de uma das professoras para exemplificar essa situação: “...o que eu mais acho assim que faz falta, [...] conseguir ter o tempo suficiente pra poder discorrer, mostrar gráfico por gráfico, questão por questão, tanto em questões de porcentagem quanto a questão das medidas de tendência central, onde que a gente pode usar, onde que não pode usar, quais foram os tipos de questões que foram feitas...”.

Pelo Projeto ter sido desenvolvido em meio à transição do ensino remoto para o ensino híbrido, uma das professoras relatou uma diminuição na participação dos estudantes na reta final do projeto: enquanto na outra escola “...depois do retorno híbrido é que deu o ‘bum’ obrigatório, pra nós foi ao contrário...”.

Os temas escolhidos pelos estudantes podem ser tão variados, que até mesmo podem ser temas desafiadores para os professores no sentido de orientar os alunos em relação ao tema de suas pesquisas (Batanero e Díaz, 2011; Fazenda, 2011), tal como nos descreve uma das professoras: “... foi muito novo pra mim trabalhar sobre Israel né, eu achava muito difícil, achei um tema bem complicado no começo de se trabalhar até pela questão da religiosidade...”. Um dos grupos que escolheu o tema “Japão: mistérios e encantos” teve dificuldades em comunicar os seus resultados e uma outra professora destacou: “Eu acho que aquela questão do Japão que ficou horrível de se representar foi muito importante pra gente também ver que nem sempre as coisas saem do jeito que a gente quer, que as vezes a gente pensa que sabe tudo, mas não consegue as vezes fazer as coisas de forma correta...”.

Um dos objetivos do LeME ao ser implementado nas escolas, era o de promover o engajamento não só dos estudantes com o PAE, mas também dos professores. No entanto, os professores que participaram do Projeto alegaram a baixa aceitação de outros colegas na participação no LeME. Sobre essa situação, uma das professoras comentou: “...eu acho que isso faz muita falta, tu estar presente ou um outro professor estar presente contigo na pesquisa, porque o convite foi feito né, nós convidamos. Eu acho ontem até eu vi muita gente inclusive falando ali ‘bah, eu podia estar na pesquisa, podia ter trazido isso’, foi feito o convite, então quem sabe no próximo a gente não tenha mais pessoas pra fazer”.

Por fim, esses professores experimentaram um sentimento de alívio e gratidão, ao verem os trabalhos finais de seus estudantes. Nas palavras de um dos professores envolvidos “Mas não é esse o objetivo, né? Ele (o PAE) engloba tudo a partir da pesquisa e aí eu acho que é isso, isso que é o legal” e, falando do trabalho já realizado: “as vezes a gente faz e nem se dá por conta né, de quão interdisciplinar que é, mas é, vai pesquisando, vai indo atrás e tem que minimamente saber um pouco das outras áreas, né?” em resposta à questão “Observaram aspectos interdisciplinares no desenvolvimento do projeto?”. Esse mesmo professor concluiu que “o principal do projeto é que eles têm o espaço coletivo de diálogo, de discussão, de pesquisa”.

Outra professora observou que no “ensino muito tradicional, era tudo em linha, era isso pra depois aquilo, pouca interdisciplinaridade” em resposta à questão “Quais conhecimentos ou saberes docentes foram mobilizados ou produzidos durante o processo do LeME?”. Era um caminho seguro, embora pouco motivador para os alunos e até mesmo para o professor.

Em relação ao sentimento dos alunos em participar do projeto e realizar o PAE foi exemplificado na fala de uma das professoras: “...e as vezes era difícil a gente acabar o encontro porque eles queriam ficar mais, eles queriam extrapolar o tempo, ficar uma tarde inteira se a gente permitisse...” em resposta à questão “Sobre como que se sentiram ao longo do projeto LeME?”.

A satisfação dos professores em terem desenvolvido um trabalho interdisciplinar é expressa no seguinte comentário de uma professora: “E essa troca, cada um contribuindo da sua forma de acordo com as suas vivências, com a sua formação, isso foi muito legal. Então acho que ficou tudo muito dividido no final, muito coeso, cada um contribuindo do seu jeito pra que o trabalho acontecesse...”. E também em: “eu nunca ousei fazer uma apresentação, nunca ousei trabalhar junto com meus colegas das outras áreas. Então que acho que isso pra mim foi um grande aprendizado, a gente sempre enxergar um a mais...” em resposta à questão “Quais conhecimentos ou saberes docentes foram mobilizados ou produzidos durante o processo do LeME?”.

Além disso, os professores concordaram que o projeto possibilitou que os estudantes se tornassem protagonistas desse processo de aprendizagem proporcionado pelo PAE ao responderem à pergunta “Vocês acham que as escolhas dos estudantes das próprias temáticas de pesquisa possibilitaram a aproximação das culturas adolescentes e juvenis com a cultura da escola?”. Em relação a isso, uma das professoras destacou: “...eles tiveram protagonismo sim porque eles nos ensinaram coisas várias vezes né, trouxeram informações que contribuíram pra que a gente pudesse aprender com eles, que é o protagonismo né, que a gente tanto fala”. A escolha da temática é um dos aspectos cruciais para o protagonismo discente (Porciúncula, 2022), promove o interesse e o engajamento do estudante com o projeto como bem exemplifica a fala de uma professora: “...essa possibilidade da escolha das temáticas, acho que também nos aproxima deles, e eu acho que isso fazia eles também ficarem tão à vontade, quererem permanecer mais tempo na escola, porque eles tavam pesquisando algo do interesse deles, com a gente ali na volta dando atenção pra eles”.

E sobre o trabalho com Projetos de Aprendizagem Estatísticos, os professores se mostraram bem satisfeitos e encorajados com uma nova perspectiva de metodologia, ao responderem à questão “O que mudou em sua forma de encarar a estatística depois da experiência com o LeME?” em que uma das professoras destacou: “Eu acredito que a aprendizagem baseada em projetos pode ajudar muito porque ela otimiza o tempo, a gente pode trabalhar diferentes habilidades de diferentes componentes curriculares num trabalho só, produzindo, como a gente fez, uma pesquisa só, com um material só”. Outros ainda se mostraram animados para a reaplicação do PAE em tempos futuros como mostra esse recorte da fala de umas das professoras: “Eu percebi que dava pra fazer muita coisa assim, dá pra procurar gente de fora, dá pra chamar os colegas, dá pra chamar mais alunos também, tendo tempo, tendo sala, tendo o mínimo de estrutura, dá pra fazer com mais turma...”.

No Grupo Focal, em uma sessão de cerca de duas horas de duração, os professores ressaltaram mais vantagens que dificuldades em sua inserção nas práticas docentes regulares, como mostra a Figura 4.

 

Figura 4

Árvore de palavras associadas ao termo Projetos

Árvore de palavras associadas ao termo Projetos

Fonte: dados da pesquisa, obtidos com o auxílio do software NVIVO versão 12.7.

 

Na Figura 4, evidencia-se o impacto da experiência do desenvolvimento do projeto de aprendizagem que, embora seja discutido na educação há mais de um século (Kilpatrick, 1918), ainda representa uma novidade para muitos professores, como foi o caso dos sujeitos de nossa pesquisa. Apesar das dificuldades encontradas, as respostas denotam entusiasmo frente aos resultados e a intenção de novas explorações nessa metodologia de ensino.

A nuvem de palavras a seguir (Figura 5), elaboradas a partir do Grupo Focal realizado com os docentes, com as 40 palavras mais mencionadas, com mais de cinco letras, denota a importância de se aprender Estatística fazendo Estatística, na perspectiva da AED (Batanero e Díaz, 2011), do fazer no sentido de ‘estatisticar’, como defende Conti (2009): “é possível, sim, ‘letrar’ e ‘estatisticar’ e que isso pode acontecer em uma escola pública, de periferia, com alunos que podem superar suas próprias dificuldades; e essa possibilidade não se resume ao conhecimento estatístico” (p. 173). Considerando a perspectiva interdisciplinar, explorando TCT e Itinerários Formativos na educação pós-BNCC, não se resume mesmo.

 

Figura 5

Nuvem de palavras

Nuvem de palavras

Fonte: Dados da Pesquisa, obtidos com o auxílio do software NVIVO versão 12.7.

 

Fazendo eco para o ‘fazer’, encontramos em destaque, na Figura 4, ‘trabalho’, ‘trabalhar’, ‘projeto’. A palavra ‘tempo’ foi associada a três diferentes contextos: o tempo disponível para a realização do projeto, sem prejuízo do programa curricular, sobretudo no início dos trabalhos, o tempo restante, com o retorno às aulas presenciais, para viabilizar a culminância do projeto, com a divulgação dos resultados da pesquisa, e a otimização do tempo, ao incorporar objetos de conhecimento de diferentes componentes curriculares, itinerários e temas transversais, como também é possível observar nos discursos ilustrados pela Figura 4.

O PAE se mostrou desafiador, exigindo que o professor aceitasse conviver com a incerteza, pois os rumos da pesquisa estavam nas mãos dos alunos. Segundo uma das professoras participantes do Projeto: “o maior aprendizado foi nos permitir não estar no controle”. Uma terceira professora se mostrou encantada com o resultado final, sobretudo com o engajamento dos estudantes: “como eles se sentem importantes no momento que nos davam mil e uma explicações da pesquisa deles!”.

 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A BNCC (Brasil, 2018) trouxe avanços para o ensino e aprendizagem de Estatística, ampliando seu programa em uma das cinco unidades de conhecimento, assegurando, graças ao seu caráter normativo, sua presença desde a Educação Infantil até o término do Ensino Médio, em todos os bimestres letivos, além de redistribuir melhor os seus conteúdos. Ela apresenta um detalhamento sobre as etapas do processo de produção científica, em progressiva complexificação, com indicações explicitas sobre diversificação na exploração de gráficos e tabelas de distribuição de frequência, sobre o cálculo e articulação de diferentes medidas-resumo que visam atender as competências e habilidades a serem desenvolvidas pelos alunos.

Documentos pós-BNCC, nela amparados, como as Referenciais Curriculares para a Elaboração de Itinerários Formativos (Brasil, 2019a) e os Temas Contemporâneos Transversais na BNCC: Contexto Histórico e Pressupostos Pedagógicos (Brasil, 2019b) apontam para a promoção de uma abordagem inter e transdisciplinar. É nessa direção, que identificamos no documento a possibilidade de promoção dos projetos de aprendizagem.

Ao final do semestre, convivendo estreitamente com professores e estudantes das duas escolas públicas que aderiram ao LeME, constatamos no PAE (Porciúncula, 2022) um grande potencial para o desenvolvimento de ambientes interdisciplinares.

A partir do objetivo estabelecido para este estudo que foi evidenciar o potencial do PAE, enquanto metodologia de ensino, para articular diferentes componentes curriculares em uma perspectiva interdisciplinar contemplando demandas da BNCC e o desenvolvimento da unidade temática Probabilidade e Estatística ressaltamos os seguintes aspectos que emergiram da análise.

Os resultados apontam que o PAE proporcionou motivação e engajamento dos estudantes quando estes puderam escolher as temáticas de suas pesquisas segundo as suas curiosidades. Tal fato pode ser um indicador de uma promoção do protagonismo discente na organização e condução de pesquisas sobre temas por eles mesmos definidos. Os diferentes temas escolhidos pelos estudantes oportunizaram um trabalho com aspectos interdisciplinares, pois abrangiam diferentes áreas do conhecimento, sendo assim, importante a participação dos professores com diferentes formações a fim de auxiliar os estudantes em suas pesquisas. Assim, o PAE se mostra como uma estratégia para promover ambientes interdisciplinares para o ensino de estatística, envolvendo os estudantes e mostrando a eles as diferentes áreas que podemos encontrar e usar a estatística, contribuindo assim com o desenvolvimento do seu letramento estatístico.

Além disso, a formação proporcionada e o apoio da equipe do LeME aos professores a fim de que estivessem preparados para conduzir o PAE com suas turmas de modo remoto e também nas escolas, resultou em uma maior confiança dos docentes na implementação, gestão e desenvolvimento de pesquisa estatística, como prescrita na BNCC. Apesar dos docentes relatar desafios vividos ao longo da implementação do PAE, também contaram com situações positivas, principalmente em relação à interdisciplinaridade observada durante o projeto.

A interdisciplinaridade permite ao estudante conectar diferentes TCT, Itinerários Formativos e componentes curriculares de forma contextualizada e motivadora. Para o professor, é uma oportunidade de se reinventar, de desconstruindo e reconstruindo saberes, estabelecendo parcerias, colaborando, compartilhando conhecimentos e sentimentos, de ser humilde, de se desapegar, de ousar.

 

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Como citar:

Giordano, C.C., Pereira, F.A., Gautério, T. da S. y Porciúncula, M. (2023). O projeto de aprendizagem estatístico: Um importante recurso para exploração da interdisciplinaridade. Revista de Educación Estadística, 2(1), 1-21. https://doi.org/10.29035/redes.2.1.8

 

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1*Autor de correspondência: ccgiordano@furg.br (C.C. Giordano)

https://orcid.org/0000-0002-2017-1195 (ccgiordano@furg.br)

7 O LeME-FCC é um projeto desenvolvido pelo Programa LeME com o apoio da Fundação Carlos Chagas e do Instituto Itaú Social.

9 O LeME Mosaico se constitui pelo trabalho de formação colaborativa em Educação Estatística de professores da Educação Básica, pós-graduandos e professores em formação que atuam no Programa LeME.